16/02/2016

O jogo dos diálogos

O futebol me prende por ser composto de vários diálogos. Cada movimento, seja de jogador, técnico, torcedor, ou árbitro (os únicos verdadeiramente envolvidos numa partida)  é uma forma diferente de dialogar, seja diretamente com um destes personagens, ou ainda com um terceiro elemento que pode nem estar em campo. Messi cobrou pênalti rolando a bola de lado para a finalização fácil de Suárez - mais fácil, inclusive, do que a cobrança original, que tinha o goleiro atento, e não batido pelo lance inusitado.

Ali, o argentino conversou com Cruyff, que fizera o mesmo pelo Ajax. Eles se olharam e disseram juntos “eu sou melhor!”. Porque afinal, não é a isso que tudo se resume: ser o melhor? Messi faz o que faz por amor ao Barcelona, ou por amor a si mesmo? Se isso fizesse alguma diferença, talvez o futebol já tivesse morrido há décadas. Lionel é de longe o melhor jogador da história do seu clube, e de perto o maior da história do futebol, já que está bem pertinho de Maradona e Pelé, ainda que tenha pelo menos mais oito anos de carreira. Mas existem outros, como Cruyff, que foi de longe o melhor jogador de um país que nunca foi campeão mundial, mas que foi responsável por uma das maiores revoluções no esporte, ao introduzir o jogo coletivo e vistoso que seria repetido tantas e tão bem sucedidas vezes, inclusive por Messi, sob a batuta de Guardiola (outro gênio, quem sabe o maior da história fora de campo). Desde o Carrossel Holandês de 1974, o mundo percebeu que levar a bola de um gol até o outro podia ser um novo diálogo, dessa vez do futebol com um pincel sobre uma tela.

Pois o movimento da bola de pé em pé, com um drible aqui e ali, e um calcanhar mais adiante, seguido por um corta luz e uma virada de jogo, para então devolvê-la ao meio campo e fazê-la, de pouco a pouco, rolar sobre cada mínimo pedacinho do gramado, envolvendo todos os jogadores, personagens de uma história contada através de movimentos que permanecem apenas no registro, nos obriga a refazer com os olhos os passos, para ir entendendo o que aconteceu naquele conjunto chuteira-bola-gramado, ou pincel-tinta-tela. Se as grossas e marcantes pinceladas do início do modernismo, em contraste com os traços finos e detalhados do classicismo, representaram uma das grandes reformas na arte por mostrarem que também há beleza no percorrer, e não somente na obra final; o mesmo fizeram Cruyff, Jansen e Neesekens, ao encher o gramado de toques rápidos e precisos e mostrar que o gol é uma questão secundária na maior parte do jogo. Muito diferente da não menos brilhante e tricampeã seleção canarinha, cuja individualidade de Pelé, Garrincha, Jairzinho e tantos outros marcou outra revolução. Maradona talvez tenha sido o primeiro a ser campeão levando o time inteiro nas costas, principalmente em 1986, quando a esquadra argentina levantou o caneco contra uma Alemanha muito mais consagrada. Messi é o melhor da geração que aprendeu a colocar os clubes à frente das seleções. Nunca foi campeão mundial, mas já ganhou quatro Ligas dos Campeões, cinco bolas de ouro, e elevou o clube catalão a um novo patamar - muito longe da sombra do Real Madrid, por onde esteve durante praticamente todo o século XX. O Barcelona é de longe o melhor time do terceiro milênio, e não é nenhum absurdo imaginar que isso se mantenha dessa forma até o quarto. E muito graças a Lionel.


Então, quem foi maior? Pelé, Cruyff, Maradona ou Messi? A verdade é que não faz diferença, porque nenhum deles seria nada sem o outro. O futebol dialoga com a história. Pois de meados do século XIX (talvez mesmo antes) até 2016 muita coisa mudou, mas não teria mudado se cada jogador que deixou uma marca não o tivesse feito. Se Leônidas não tivesse se arriscado na primeira bicicleta, ou se o Rei tivesse ido com a bola de encontro a Mazurkiewicz ao invés de dar origem ao drible da vaca, ou se as pernas de Garrincha fossem retas, ou se Rivelino nunca tivesse tentado rolar a bola da direita para esquerda com o mesmo pé criando o elástico, ou se Maradona tivesse tocado a bola para algum companheiro no meio do passeio pela seleção inglesa de 1978, ou se Roberto Carlos tivesse reconsiderado antes de dar aquela pancada de trivela para bater Barthez em 1998 (pena que foi num amistoso), ou se Cruyff não tivesse rolado a bola de lado naquele pênalti, pelo Ajax, inspirando Messi a fazer o mesmo, o futebol simplesmente não existiria. O objetivo de cada um desses artistas sempre foi ser melhor que aqueles que vieram antes deles, melhor que os seus contemporâneos, e melhor que os que tomariam os seus lugares de ídolos. Mas sempre com a lembrança do que já foi feito.

Portanto, o pênalti de Messi não vem sozinho. Vem junto com tudo que já foi feito, com os mestres do passado, do presente e do futuro, que pintam o gramado com manchas grossas de dribles e toques e chutes fantásticos. O argentino é, aliás, especialista em recriar jogadas que ficaram para a história. Talvez seja por isso que o considero maior que todos os que citei, e também que qualquer um que poderia citar. Mas eu também sou da geração que coloca os clubes à frente das seleções.

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